Por Anna Julia dos Santos Ribeiro
Lohane Rodrigues Martins
01/07/2023
A relação entre homens e águas remonta à origem de nossas vidas, dada a importância dos oceanos, lagos e rios na evolução da espécie humana (Moraes, 2007). No contexto dessa interação, a pesca não é apenas uma atividade isolada, mas sim um complexo conjunto de relações que envolvem aspectos sociais, econômicos e ambientais.
A pesca é uma das atividades mais antigas do mundo, com registros dessa prática datados a aproximadamente 40.000 anos atrás. As primeiras comunidades que habitavam regiões próximas a corpos d’água capturavam peixes como meio de subsistência, empregando métodos rudimentares, como a pesca manual e o uso de ferramentas simples. A evolução humana, acompanhada pelo crescimento populacional e o consequente aumento da demanda por pescado, impulsionou o desenvolvimento da pesca no aprimoramento de técnicas e tecnologias. Na contemporaneidade, a expansão da atividade pesqueira reflete a importância contínua desse setor na alimentação, economia e sustento de comunidades em todo o mundo.
Define-se como atividade pesqueira as ações que envolvem a captura e venda do peixe. Essa prática pode ser realizada com diferentes propósitos, incluindo subsistência, lazer, atividades acadêmicas ou comerciais. A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca define, por meio da Lei Nº 11.959, de 29 junho de 2009, a pesca artesanal como uma modalidade comercial em que pescadores profissionais, de forma autônoma ou em regime de economia familiar, utilizam seus próprios meios de produção ou contratos terceirizados, empregando embarcações de pequeno porte. A pesca industrial, também classificada como comercial, é caracterizada pela captura de pescado em larga escala, utilizando embarcações de grande porte com equipamentos e tecnologias avançadas financiadas por empresas. A pesca para a subsistência, a pesca científica e a pesca amadora são categorias definidas no âmbito não comercial. Independente da forma como é realizada, essa atividade desempenha um papel crucial no desenvolvimento econômico – principalmente em regiões costeiras – gerando empregos, garantindo a segurança alimentar e impulsionando o dinamismo do mercado.
A pesca em 2020 registrou um aumento significativo em relação às médias das décadas anteriores. É estimado que nesse período, as atividades globais de pesca e aquicultura produziram um total de 177,8 milhões de toneladas de pescado, com 157,4 milhões de toneladas sendo utilizadas para o consumo humano, totalizando assim, uma distribuição de 20,2 kg per capita. Do número total de pescado, 59,8 milhões de toneladas foram destinadas à exportação, movimentando um total de 150,5 bilhões de dólares na economia mundial, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, doravante). Ao redor do mundo, a pandemia de Covid-19 impactou significativamente a produção de pesca e aquicultura, provocando uma queda na demanda por pescado e, consequentemente, diminuindo seus preços. No entanto, a produção desse período foi 30% superior à média dos anos 2000 e mais de 60% acima da média dos anos 1990. O setor, atualmente, emprega cerca de 58,5 milhões de pessoas somente na produção primária – aproximadamente 21% mulheres.
Ao direcionarmos nossa atenção para o aspecto do consumo, observamos uma demanda em ascensão por peixes e outros alimentos provenientes do meio aquático. Consoante a FAO, estima-se que o consumo aumentará em 15% e atingirá 21,4 kg per capita até 2030, impulsionado pela ascensão da renda e urbanização, mudanças nas práticas de processamento e distribuição, bem como novas tendências alimentares. Espera-se que o consumo total de pescado aumente em todas as regiões, com um forte crescimento projetado na América Latina (+ 33%), África (+37%), Oceania (+28%) e Ásia (+20%). Vale salientar que, os países asiáticos foram a fonte de 70% da produção global de pesca e aquicultura em 2020, seguidos por países das Américas, Europa, África e Oceania. Nas duas últimas décadas, a China gastou bilhões de dólares para apoiar sua indústria pesqueira e, atualmente, é o maior produtor de pescado, seguida pela Indonésia, Índia, Vietnã e Peru. Em 2018, o total global de subsídios à pesca foi estimado em US$35,4 bilhões, e a China responde por US$7,2 bilhões desse valor. Essencialmente, a maior parte do aumento da produção total de pescado no mundo não apenas ocorre na potência asiática, como também tem sido consumida por ela.
PANORAMA DA PESCA NO BRASIL
No Brasil, a pesca e a aquicultura têm demonstrado uma trajetória de expansão nos últimos anos. A produção brasileira de peixes de cultivo alcançou 860.355 toneladas em 2022, um aumento de 2,3% em relação às 841.005 toneladas produzidas em 2021, segundo levantamento exclusivo da Peixe BR. Desde que a associação oficializou essas estatísticas, em 2014, a evolução da produção de peixes de cultivo já chegou a 48,6%. É um acréscimo de 281.555 toneladas em nove anos, com destaque para a tilápia. Apesar de possuir uma extensa costa de 8.500 km, 12% das reservas de água doce do mundo e 53% dos recursos hídricos da América do Sul, o Brasil ainda depende de importações para suprir sua demanda. Segundo o Trade Map (Trade statistics for international business development), o Brasil se encontra entre os 11 maiores importadores de pescado do mundo, importando cerca de R$3 milhões no ano de 2022.
Consoante a divisão brasileira do Fundo Mundial para a Natureza (WWF), aproximadamente 80% dos pescados são sobreexplorados, ou seja, são capturados em uma velocidade superior à que se reproduzem, o que pode resultar no declínio do estoque de diversas espécies. No cenário mundial, os dados mais recentes da FAO reafirmam essa tendência preocupante: a sobrepesca e seus desdobramentos a curto, médio e longo prazo. De acordo com esses dados, cerca de 34,2% dos estoques de peixes são pescados em níveis insustentáveis. A atividade industrial possui um papel inquestionável nesse contexto, em razão da captura excessiva, pesca não seletiva e pesca ilegal, realizada no período de defeso dos animais aquáticos. A vista disso, surge a estratégia “Transformação Azul” que busca aumentar o potencial dos sistemas alimentares subaquáticos e garantir uma alimentação saudável com viabilidade social, econômica e ambiental. O relatório SOFIA é uma referência crítica para governos, formuladores de políticas e acadêmicos, destacando o desleixo atual e a importância dessa transformação para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
A pesca é uma parte essencial do setor de recursos vivos, que compõe um dos segmentos da economia do mar. O setor de recursos vivos compreende a colheita de recursos renováveis (setor primário), sua conversão em alimentos, rações, produtos de base biológica e bioenergia (processamento) e sua distribuição ao longo da cadeia de abastecimento. Ele pode ser dividido em três seções: o setor primário, que inclui a captura de pescado e a aquicultura; o setor de processamento e preservação de produtos pesqueiros; e o setor de distribuição de pescado. Do total do setor de recursos vivos, cerca de 3/4 estão relacionados às atividades de pesca e aquicultura. Por outro lado, a parcela destinada ao pescado industrial é responsável por quase 1/4 do setor, enquanto a fabricação de pratos prontos a partir desses recursos é praticamente irrelevante em termos de participação econômica. Atualmente, esse setor de recursos vivos representa aproximadamente 3,57% da economia do mar. Apesar de ser um percentual baixo em comparação com alguns países europeus, o setor marítimo no Brasil possui grande potencial. Sua modernização pode ampliar a oferta de alimentos no país. A aquicultura marinha ainda é incipiente, enquanto a pesca artesanal é representativa, sendo necessária a expansão da indústria pesqueira.
Além da economia, a pesca também desempenha um papel significativo nas comunidades costeiras e ribeirinhas no Brasil, contribuindo para a identidade dessas comunidades ao transmitir conhecimentos e tradições ancestrais, conservando a cultura local. Essas comunidades costeiras também auxiliam na preservação dos recursos pesqueiros e dos ecossistemas marinhos, visto que a pesca artesanal desenvolvida por elas tende a ser menos impactante que a pesca industrial, com o uso de técnicas menos invasivas, evitando a pesca excessiva e a captura de espécies não desejadas ou ameaçadas. Ainda assim, essas comunidades costeiras não são participantes ativas na elaboração de políticas públicas, apesar de sua contribuição à segurança alimentar e ao desenvolvimento econômico local.
Vale salientar que a falta de dados quantitativos sobre a pesca no Brasil é outro problema significativo que afeta negativamente a gestão e o desenvolvimento sustentável do setor pesqueiro. A ausência de informações precisas e atualizadas dificulta a compreensão da magnitude das atividades pesqueiras. Apesar do potencial do setor pesqueiro para promover o bem estar social e o desenvolvimento econômico sustentável, os órgãos estatais do país pecam ao não estabelecer políticas públicas eficientes que aproveitem esse potencial. Sem dados quantitativos confiáveis, torna-se desafiador monitorar e avaliar o estado dos estoques pesqueiros, identificar práticas de pesca insustentáveis e implementar medidas de conservação e inclusão eficazes. A falta de dados pode dificultar o planejamento de políticas públicas, o direcionamento de investimentos adequados e a formulação de estratégias para promover a sustentabilidade e a segurança alimentar.
Nesse sentido, se torna imprescindível que, primeiramente, haja incentivos à pesca no território nacional, de modo que o pescado produzido nacionalmente supra, pelo menos, a maior parte da demanda, reduzindo as importações. Estes incentivos devem ter foco especial na pesca artesanal, que desempenha um papel fundamental na segurança alimentar de comunidades costeiras e indígenas. Além disso, a promoção de subsídios direcionados aos pescadores artesanais pode contribuir para a redução dos preços dos pescados, tornando-os mais competitivos no mercado internacional, sem incentivar a pesca excessiva realizada pelo setor industrial. Ademais, a elevação dos níveis de coleta de dados sobre a pesca e aquicultura é de suma importância para que as atividades pesqueiras sejam compreendidas em sua completa magnitude, facilitando a administração e o desenvolvimento desse setor. A disponibilidade de dados precisos e abrangentes sobre a pesca e a aquicultura é o alicerce para a gestão eficaz, a conservação dos recursos pesqueiros e o avanço rumo a um futuro sustentável para as comunidades costeiras e o oceano.